Quem é Lewis Camoens? (Ou como entrei pela primeira vez na Livraria Lello)
1. Uma grande falha
Eis o relato de como encontrei um livro famoso, de que já tinha ouvido falar muitas vezes, mas nunca tinha visto à minha frente. Um livro muito importante para a cultura inglesa, mas também para a cultura portuguesa. Fiquei de boca aberta, como quando encontramos uma vedeta não de papel, mas de carne e osso, que nós conhecemos, mas não nos conhece a nós.
A história teve dois pontos de partida e terminou no Porto, com o tal livro à minha frente.
O primeiro ponto de partida foi uma história no Instagram em que perguntei a quem por ali andava que livrarias recomendava.
Recebi muitas e interessantes respostas: livrarias portuguesas e não só, livrarias onde já estive, livrarias que conheço, mas onde nunca estive, livrarias que não conheço. Os resultados estão aqui, para quem estiver interessado.
Uma daquelas livrarias que conhecia, mas onde nunca tinha estado era a Livraria Lello, no Porto. Fiz outra pequena história a dizer isso mesmo… Recebi mensagens chocadas. Nunca tinha ido à Livraria Lello? Como era possível?
Em minha defesa, atrevo-me a dizer que todos nós temos coisas que não fizemos e que outros fizeram quando ainda tinham poucos dias. Mais: todos nós ignoramos coisas que outros consideram absolutamente essenciais. Todos nós temos lugares aonde já deveríamos ter ido há muito! Todos nós temos livros por ler que não revelamos ao nosso melhor amigo. (Esta última frase lembra-me o jogo Humiliation do livro Changing Places de David Lodge. Fica a sugestão de leitura; tinha mesmo de pôr aqui uma referência literária para compensar o início do parágrafo.)
Em suma: cada um de nós é um conjunto de limitações. Lutamos contra essas limitações, mas não há tempo (e às vezes dinheiro) para tudo. Somos diferentes uns dos outros. Tivemos percursos diferentes. Temos interesses diferentes.
Aquilo que acabei de dizer não é desculpa: é lugar-comum (julgo que todos concordamos; mas mesmo assim ficamos chocados quando percebemos que o vizinho não leu aquele livro).
A verdade é que eu nunca tinha ido à Lello. Não há muito mais a dizer. E, claro, já se percebeu (não vale a pena mentir) que esta história vai terminar na Livraria Lello. Foi lá que encontrei um certo livro.
2. Uma conversa na Feira do Livro do Porto
Como disse, esta história tem dois pontos de partida e um ponto de chegada.
O segundo ponto de partida foi o convite para que o Sam The Kid e eu gravássemos um episódio do Assim ou Assado na Feira do Livro do Porto.
O convite chegou-nos da organização da Feira do Livro do Porto há alguns meses. Não foi o primeiro (já gravámos em vários lugares por esse país), mas tinha um encanto especial: eu nunca tinha ido à Feira do Livro do Porto (mais uma confissão).
Seria no dia 25 de Agosto. Aceitámos. Marquei as inevitáveis férias longe de casa tendo em conta a data. Chegados ao dia, lá fomos para o Porto. Como estávamos em Agosto, fomos todos: o Matias, o Simão, a Zélia e eu (por ordem crescente de idade).
Fomos com muito tempo de antecedência, mas de repente estávamos numa intrigante bicha de automóveis a tentar entrar no estacionamento por baixo dos Jardins do Palácio de Cristal.
Quando saímos, percebemos: toda a população do Porto parecia estar a ir para a feira. O espaço é tremendo (e plano, o que admito ser uma indirecta para a organização da Feira do Livro de Lisboa), com aqueles jardins entornados na cidade, a vista apetitosa, pessoas a passear, a conversar, e livros, muitos livros.
No meio, a Concha Acústica. Também não a conhecia (não me batam!). Um espaço para música — ou, pelo menos, podcasts em que participem músicos. Os meus filhos andavam entusiasmados a descobrir os cantos daquela casa. As pessoas foram chegando. O Samuel chegou também, preparámo-nos, subimos ao palco e tivemos uma conversa surpreendente. Já vamos numas boas dezenas de episódios, mas este foi especial — foi a assistência, o espaço, a conversa solta, a participação do Jorge Ferreira, o intérprete de língua gestual portuguesa…
A certa altura, o Samuel desafiou-o a traduzir o rap que se pôs ali a disparar, em grande velocidade. Naquele momento, víamos em conjunto, admirados, mesmo sem perceber a tradução, o esforço criativo de quem canta e quem traduz. Toda a conversa foi mesmo sobre a língua e a criatividade.
Não é a mesma coisa, mas fica a sugestão para ver o episódio na gravação que está no YouTube.
3. Um convite especial
Pois bem: que tem a gravação que ver com o tal livro que encontrei numa livraria aonde nunca tinha ido? (E como já é a segunda vez que uso «aonde» neste relato, é provável que receba mensagens a perguntar se a palavra existe; fica para o próximo episódio do Assim ou Assado!)
Como já sabia com muita antecedência que teria de ir ao Porto por aqueles dias, perguntei à Guerra e Paz, a editora da maioria dos meus livros, se não gostaria de marcar uma sessão de autógrafos por lá. Não que sinta uma necessidade tremenda de rabiscar papel (o que é bom nas sessões é mesmo falar com as pessoas), mas não custava nada aproveitar a viagem para divulgar o último livro (já agora, o título é Gramática & Pontuação). Os livros não se vendem sozinhos.
A sessão ficou marcada para dia 26 de Agosto, às 18h. Foi também surpreendente, por vários motivos.
Os meus filhos e a Zélia tinham acompanhado a sessão do dia anterior — mas a ideia de voltar à Feira para ficarem especados a olhar enquanto eu assino livros já não era assim tão agradável. Pensaram em ficar no hotel. Disse-lhes que o melhor era irmos todos, porque não haveria de aparecer muita gente e sempre poderíamos depois andar um pouco pelo Porto.
Apareceu muita gente. Nunca tinha tido uma sessão assim. Conversei com muitas pessoas, recebi bolos (muito obrigado!), recebi um livro especial (de que falarei noutro dia).
Foram duas horas a falar com pessoas, incluindo o André Vilaça, um amigo que conheci pelas redes sociais e que foi lá para conversar. Ele escreveu um pequeno texto sobre o encontro.
De repente, aproxima-se uma rapariga a perguntar se tinha entendido bem: eu nunca tinha ido à Lello?!
— É verdade, nunca fui.
Ela sorriu.
— E não gostava de ser convidado para lá ir?
Sorri também:
— Claro!
Era Inês de Carvalho, gestora das redes sociais da livraria. Pouco depois, tinha o convite no meu telemóvel e conseguimos marcar a visita para a manhã antes de voltarmos para Lisboa.
4. Um sorriso no vitral
Lá aparecemos à hora marcada. Fomos muito bem recebidos. A Inês estava à nossa espera e, ao lado, Sérgio Sousa, livreiro da Lello, que nos levou numa visita guiada inesquecível.
Não vou esconder: a livraria é linda, mas tem um pequeno problema. É mesmo muito, muito, muito, muito famosa.
O resultado é uma multidão lá dentro, mesmo com o controlo de entradas. Como o Sérgio nos explicou, estão a criar um espaço no edifício ao lado para que os visitantes possam subir a famosa escadaria e sair por outro lado.
Sim, todos querem ir à Livraria Lello. Dito isto, afirmo: mesmo com todas as pessoas lá dentro, vale muito a pena (por isso é que essas pessoas estão lá dentro). E não digo isso só porque me convidaram. Passar pela livraria vale a pena — e conhecê-la numa visita guiada ainda mais.
Há a escadaria. O vitral no tecto (que inclui um smiley). Os livros em redor. O espaço que nos empurra para imaginar histórias na própria livraria, para lá dos livros das estantes (mesmo com a multidão)…
Antes de avançar. Sim, o vitral tem lá um sorriso escondido. Não digo onde, para que tentem encontrá-lo quando por lá passarem. Foi restaurado há pouco tempo e lá ficou aquele sorriso típico da nossa era.
Não é caso único de restauros que deixam marcas modernas (muitas das grandes obras arquitectónicas têm camadas de várias épocas). É por isso, como nos lembrou o Sérgio, que a Catedral de Salamanca tem um astronauta na fachada…

Os meus filhos divertiram-se à procura do smiley. Encontraram. Eu não consegui. Tive de pedir a ajuda do público.
Por fim, fomos ao coração secreto da livraria. A colecção especial. Num espaço com temperatura e humidade controladas, encontrámos um incunábulo veneziano e algumas primeiras edições de livros conhecidíssimos, como os tais famosos que por fim encontramos ao vivo.
E lá estava o livro que me fez escrever todo este relato, o ponto de chegada da história.
5. Por fim, Lewis Camoens
O livro era este: a primeira edição da primeira tradução para inglês d’Os Lusíadas de Luís de Camões. Ou, como se escreve na primeira página do primeiro canto, Lewis Camoens.
A tradução foi a primeira tradução fora da Península Ibérica do Épico de Camões (e apenas a primeira de várias traduções inglesas da obra). Foi publicada em 1655 e teve a autoria (sim, a autoria: as traduções têm autores) de Richard Fanshawe.
A tradução de Fanshawe foi composta em pentâmetro iâmbico em estrofes de oito versos, seguindo, assim, uma métrica típica da língua inglesa para se aproximar dos decassílabos heróicos de Camões. Conseguir recriar Os Lusíadas nesta métrica e em inglês é também um grande feito literário.
Conhecia bem o nome do tradutor e a importância da obra — mas nunca tinha estado com a primeira edição à minha frente. Aproximei-me a medo, como se estivesse perante um tesouro. Corrijo: aproximei-me a medo porque estava perante um tesouro.
6. O encanto das traduções
As traduções para outras línguas de obras escritas na nossa própria língua têm o seu encanto e, de vez em quando, até ajudam a iluminar a obra aos olhos de quem a pode ler no original.
Antes de voltar ao The Lusiad inglês, faço um desvio até à China. No ano passado, em Pequim, conheci Zhang Weimin, o tradutor para mandarim (ele próprio utiliza o termo «chinês») d’Os Lusíadas. Tive oportunidade de ter na mão um exemplar da tradução.
Claro que não compreendi nada do que lá estava escrito. No entanto, a tradução chinesa da obra de Camões, ali no papel, faz saltar à vista uma característica da obra portuguesa.
A tradução revela de forma geométrica a métrica da obra. Como?
O tradutor manteve, em grande parte dos versos, uma estrutura com dez sílabas em cada verso. Como às sílabas correspondem caracteres chineses e estes têm uma forma quadrada — e como cada estrofe tem oito versos, com uma separação ligeiramente maior que os espaços entre cada um dos caracteres, aquilo que vemos são quadrados quase perfeitos. Os Lusíadas tornam-se um mosaico de estrofes com esta forma:
威武的船队,强悍的勇士,
驶离卢济塔尼亚西部海岸,
越过自古茫无人迹的海崖,
甚至跨越塔普罗瓦那海角,
经历千难万险、无穷战争,
超出人力所能承受的极限,
在那荒僻遥远的异域之帮,
将灿烂辉煌的新帝国拓建。
Logo o primeiro verso fala de «qiánghàn de yǒngshì», que são guerreiros destemidos, ou seja, barões assinalados.
Como ouvi ao vivo Zhang Weimin a descrever o seu trabalho de interpretação e investigação da obra, fiquei com muita vontade de saber mandarim para ler a tradução. Parece absurdo, eu sei. Por que razão teria eu vontade de ler uma tradução se tenho acesso ao original? Apenas porque a tradução é também um trabalho de criação — e, neste caso, de solução de muitos problemas: como passamos aquilo que está em português para uma língua tão diferente como o mandarim? Como criamos uma obra de arte em mandarim com base numa obra de arte em português — que tem como material a própria língua, os seus ritmos, os seus sons e a sua estrutura? É esse o fascínio da tradução.
Não me pus a aprender mandarim (a vida está cheia de vontades que não podemos cumprir) — mas ao ouvir o tradutor a falar de forma tão entusiasmada sobre Camões senti essa pontada de desejo literário.
Voltemos ao Porto. Este é o início do livro de Camões vertido para inglês por Fanshawe. Aproximemos o olhar da primeira estrofe:
«Armes, and the Men above the vulgar File» — As armas e os barões assinalados, os homens acima do vulgar… — «Who from the Western Lusitanian shore…»
Reparamos também nos pormenores: o S longo que era ainda habitual na época — «ſhore» e não «shore» e, em itálico, «Luſitanian» e não «Lusitanian». Também o confronto com as primeiras edições d’Os Lusíadas em português permite-nos ver como era diferente a grafia da época. Esta primeira estrofe, no original, era:
Aliás, o inglês, que tem uma ortografia consuetudinária e não sistematizada por comité, como é o caso da nossa, apresenta menores diferenças entre a grafia da época e a nossa (mas, diga-se, um conjunto de regras ortográficas bem mais complexo).
A tradução de Fanshawe não foi a primeira tradução da obra: foi a primeira tradução não ibérica. Houve várias traduções para castelhano, incluindo de Bento Caldeira, português que traduziu a obra para castelhano. Vemos ainda o uso do «ç», que mais tarde foi eliminado da grafia castelhana.
Também anterior à tradução de Fanshawe foi a tradução para latim de Frei Tomé de Faria, em 1622, que tem a particularidade de não dizer quem é o autor do original em nenhum lugar da edição e de apresentar Frei Tomé como autor. Não parece ter havido intenção de enganar; afinal, a obra era já bastante conhecida. É apenas um sintoma de que o tradutor também é um autor…
7. O choque da tradução
A tradução de Fanshawe, que tive ali nas minhas mãos, na Livraria Lello, parece basear-se na tradução castelhana de Faria y Sousa, de 1639, como se explica na tese de doutoramento de Tiago Sousa Garcia (que, entre outras coisas, enquadra a criação nas tensões políticas da Inglaterra da época). A tradução indirecta é uma prática muito antiga.
Olhemos para os primeiros versos:
Armes, and the men above the vulgar file,
Who from the Western Lusitanian shore
Past ev’n beyond the Trapobanian-Isle,
Through seas which never ship had sayld before;
Who (brave in action, patient in long toyle,
Beyond what strength of humane nature bore.)
Mongst nations, under other stars, acquir’d
A modern scepter which to Heaven aspir’d.
Olhar para aqueles primeiros versos tem um efeito: tira a venda do hábito; aqueles versos iniciais são tão conhecidos — «As armas e os barões assinalados...» — que são quase um encantamento, um conjunto de sons que quer dizer tudo e já não quer dizer nada.
A tradução, como um choque, obriga-nos a quebrar o feitiço e a ver o que nos dizem os versos: aqueles homens importantes, os barões assinalados, que saíram a navegar desta praia a um canto da Europa.
Há uma página da Biblioteca Nacional com algumas das traduções d’Os Lusíadas. Convido a conhecerem a colecção digital, que inclui, claro, a obra de Fanshawe.
8. As línguas que se picam umas às outras
Mas há mais: olhar para esta tradução também me leva a pensar no real valor de termos várias línguas no mundo. Os Lusíadas foram escritos em português. Camões escreveu com as palavras que tinha à disposição, com a estrutura da língua, com as tintas do português. A obra, assim como foi escrita, só poderia ter sido escrita com estes materiais.
No entanto, e isto não é contradição nenhuma, depois de aparecer em português, foi traduzida para várias línguas — e foi traduzida porque cada tradutor conseguiu transportar o texto para a sua língua, esticando-a, torcendo-a, pensando um pouco mais, resolvendo os problemas que saltam de cada esquina do texto.
Por outras palavras: os escritores espicaçam os tradutores a escrever; e, através das traduções, as línguas espicaçam-se umas às outras. Há muito vocabulário que viaja também por causa das traduções; as línguas alimentam-se, as línguas competem e, no fim, ficamos todos mais ricos. A diversidade linguística é também uma fonte de riqueza literária.
Espicaçado fui eu também por aquela visita, por aqueles livros. Os meus filhos estavam fascinados por ouvirem as histórias contadas pelo Sérgio e por perceberem que aqueles livros eram, literal e metaforicamente, um tesouro — e tesouro que encontramos naquela livraria a que nunca tinha ido (e em todas as livrarias, na verdade).
Os livros são o que está lá dentro, mas também as histórias por que passamos até chegarmos a eles. Encontrar um livro famoso é mesmo como encontrar uma personagem famosa. Ou talvez como visitar uma cidade de que já ouvimos falar, mas aonde nunca fomos.
Foi a minha vez de visitar aquele livro, em particular.
Agora falta-me conhecer uma primeira edição d’Os Lusíadas.
E não, não estou aqui à espera que alguém me convide a conhecer (mas também não direi que não!). Enquanto isso não acontece, podemos sempre olhar para a imagem digital dessa edição ainda mais importante que a tradução de Fanshawe…