Ora, apeteceu-me passear pelas catacumbas desta página. Fui lá desenterrar um texto que escrevi há quase nove anos. Aqui fica…
[Aviso: este artigo contém símbolos estranhos. Espero que os computadores dos caríssimos leitores se aguentem à bronca.]
Como se diz a palavra «giz»?
Ia eu a caminho da festa de que falei há uns dias [em 2016…], quando passei numa curiosa terra chamada GIZ. Sim, Portugal tem terras com nomes muito estranhos.
Ora, a minha cabeça é ainda mais estranha. Aquilo em que pensei quando passei na simpática aldeia foi isto: a palavra «giz» tem duas consoantes que leio praticamente da mesma maneira.
A coisa é subtil: a transcrição fonética da palavra costuma aparecer com o «z» lido como «ch»: [ʒiʃ]. Mas, para vos dizer a verdade, ouvindo com atenção, parece-me que lemos a palavra com um «j» final: [ʒiʒ]. Leio «giz» como «jij».
Seja como for, em Portugal, ninguém lê este «z» como «z»: seria algo como [ʒiz], o que não se diz em lado nenhum (repito que estou a falar da leitura da palavra isolada).
No Brasil, a coisa varia entre a leitura carioca muito parecida com a nossa e a leitura paulista, em que o «z» se lê como um «s»: [ʒis].
Algumas pessoas menos dadas a estes temas linguísticos estarão agora a perguntar que raio de símbolos são estes. São símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (a sigla comum é a inglesa: IPA), o alfabeto que os linguistas usam para transcrever os sons das várias línguas o mais objectivamente possível — o que não é nada fácil.
Quando olhamos para a nossa língua transcrita com este alfabeto ficamos surpreendidos. A palavra «português», por exemplo, é assim: [puɾtuˈgeʃ]. Já a palavra «carro» transcreve-se como [ˈkaʀu]. Isto, claro, se estivermos a falar da pronúncia lisboeta, porque a transcrição fonética consegue apanhar as diferenças de pronúncia da língua.
Por outro lado, e levantando só um pouquinho o véu desta área imensa da linguística, a fonologia estuda a forma como esses sons se organizam para distinguir significados: assim, podemos dizer «giz» de várias maneiras, mas o significado será sempre o mesmo; já se mudarmos o último som para «gil» o sentido que obtemos já é outro.
O estranho caso da blogger que queria dividir as palavras
Ah, mas a língua é malandra até dizer chega. Quando temos uma vogal à frente da palavra (por exemplo «giz amarelo»), aí sim lemos o «z» como «z» — «gizamarelo» ou, em IPA: [ˈʒizɐ.mɐ.ˈɾɛ.lu]. «Lemos», como quem diz. Depende da zona do país. Há quem mantenha a pronúncia das duas palavras como quando aparecem isoladas. Temos, assim, leituras como «gijamarelo» ou «estájaver?» em vez do mais sulista «estázaver?».
Estas formas de ligar as palavras umas às outras variam de língua para língua (claro) e, dentro de cada língua, são uma das características que distinguem os vários sotaques. Ora, claro, estas diferenças vêm trazer à baila os fantasmas tribais de que temos falado por aqui tantas vezes. Tu falas de maneira diferente? Não és cá dos meus…
Um pequeno exemplo: há uns anos, lembro-me de ler num dos blogue da moda (não me lembro qual) um texto em que a blogger gozava com alguém que apareceu na televisão e disse «estájaver?» em vez de se conformar à pura pronúncia lisboeta.
Atirou a blogger (disto já me lembro): «Mas a criatura ainda não percebeu que “estás a ver” são três palavras separadas?»
Fartei-me de rir. Porquê? Porque todos nós dizemos as frases sem pausas. Ninguém, no seu perfeito juízo ou fora de situações muito particulares, diz as várias palavras de forma separada. Estão [pausa] a [pausa] perceber [pausa] o [pausa] que [pausa] estou [pausa] a [pausa] dizer?
Mas ri-me também por isto: na verdade, é precisamente a pronúncia lisboeta da blogger que junta as palavras e lhes muda o som por serem ditas sem qualquer separação. A pronúncia de Lisboa implica dizer «estázaver». Já o falante mais a norte lê «estás» como se fosse uma palavra isolada, com o seu «∫/ʒ» final: «estáj a ver». Ironias da blogaria pseudolinguística nacional.
O amor entre os linguistas
As palavras, na nossa boca, juntam-se, mudam, misturam-se. Juntamo-las umas às outras e temos dificuldade em separá-las na corrente ininterrupta de sons que nos sai dos lábios. Tanto é assim que o tal Alfabeto Fonético Internacional, quando é usado para transcrever frases, não costuma vir com espaços. A frase «amo-te muito» é transcrita como «ˈɐmutɨˈmũjtu». Parece pouco romântico? Mas é assim que dizemos a frase… Não pomos lá espaços no meio. (Será que algum casal de geeks linguísticos escreve bilhetes de amor usando o alfabeto fonético?)
Há quem julgue que juntar as palavras é descuido, tentando contrapor uma pronúncia artificial, em que cada palavra soa de forma isolada. Felizmente, são poucos os doid—— as pessoas que caem nesse erro.
Agora, claro, tenho de fazer o aviso do costume: isto não quer dizer que uma boa dicção da nossa língua não seja importante quando falamos em público — mas uma boa dicção também implica juntar as palavras umas às outras de forma natural e de acordo com as regras da língua…
Uma palavra que desapareceu mas deixou rasto
As regras de ligação entre palavras na oralidade são complexas, quase todas inconscientes — e muito interessantes. Escondem até alguns achados de arqueologia linguística.
Querem ver?
Há uns dias, descobri num interessantíssimo comentário de Fernando Venâncio que a nossa comum pronúncia da expressão «como o Tiago» é uma relíquia duma palavra que já não usamos.
Se ouvirem com atenção, percebem que, muitas vezes, no dia-a-dia dizemos «como o Tiago» desta maneira: «comòtiago» (isto não é Alfabeto Fonético Internacional, note-se).
Ora, usar um O aberto numa junção de palavras é comum quando unimos o A ao O («tira o chapéu» é dito em conversa rápida como «tiròchapéu»). Já a junção de dois U costuma sair U. Então, donde vem o [o] aberto de [comòtiago]? Virá da antiquíssima palavra «coma» (sinónimo de «como»). Há muitos séculos, dizíamos «coma mim» («como eu») e «coma ti» («como tu»). A palavra desapareceu, mas deixou uma marca na maneira como ligamos a palavra «como» ao artigo «o»…
Como esta, haverá outras. Aliás, já vos tinha falado de concordâncias verbais com palavras-fantasma. As palavras desaparecem, mas deixam pistas. E alguns linguistas lá se armam em detectives à procura das palavras escondidas…
A nossa língua é isto tudo e muito mais. Tem regras muito complexas que usamos sem notar, guarda segredos de chorar por mais — e consegue surpreender durante uma vida inteira todos aqueles que para ela olham com curiosidade.
Querem mais um segredo? O português, nisto da malandrice, não é um caso isolado. Estes fenómenos acontecem em todas as línguas, desde a língua falada por algumas dezenas de pessoas na Amazónia até às línguas como o chinês ou o inglês. A linguagem humana é qualquer coisa de nos deixar pasmados.
Tocastes em um ponto da fonologia que sempre me intrigou. Como sou sulista- sul do Brasil, quer dizer, observo muito como falantes do português de qualquer canto do mundo pronuncia palavras que se conectam. Vou dar um exemplo específico da pronúncia de um brilhante e carismático psicólogo brasileiro o qual me deleita muito com os seus podcasts. Ele se chama Marcos Lacerda e tem um podcast que se chama "Nós da questão". (Se não o conhece, recomendo muitíssimo que o siga nas redes sociais)! Pois bem, com relação à pronúncia da variedade do português brasileiro que o Marcos Lacerda fala, que é da região nordeste do Brasil, comecei a notar que é diferente da minha no que diz respeito aos Ms finais. Em palavras que terminam em M, por exemplo, a preposição "com" seguida de um artigo A ou AS a minha pronúncia do M se torna um som similar a /ng/ como no inglês "singing", mas a do meu querido podcaster brasileiro não. O M final dele continua como a pronúncia do M inicial da palavra mamãe (bilabial). Portanto, ao pronunciar algo do tipo "Com quem as crianças estão"? A resposta "com a mamãe" dele soa para os meus ouvidos sulistas soa como "Coma (a) mamãe" e não "Com a mamãe". Eu já diria "/Kw/a mamãe", em uma fala mais espontânea. Você poderia elaborar mais um pouco sobre esta diferença? Obrigada, Marco!