«Não há nada» é erro?
Nós somos bons a usar a língua (apesar do que se diz por aí) e muito maus a compreendê-la. Cada idioma humano é criado pelos falantes, sem plano prévio — mas o seu funcionamento é tão complexo que não é fácil entendê-lo de forma consciente.
É também por isso que surgem tantos mitos sobre a linguagem humana.
Um dos mitos mais subtis sobre a nossa língua, com a aparência de ser muito razoável, é a ideia de que, se juntarmos duas palavras negativas, acabamos com uma afirmação. Assim, se eu disser «não há nada» é porque estou a dizer que há alguma coisa — e, se não é essa a minha intenção, então cometi um erro. É uma dupla negação. Logo, uma afirmação!
Para quem acredita neste mito, se o nosso objectivo for negar alguma coisa, é erro dizer «não há nenhum», tal como também o é dizer «não há nada» ou «não quero nada».
Não é bem assim...
A origem do mito é fácil de compreender. A lógica que aprendemos na escola diz-nos isto: duas negações equivalem a uma afirmação. É verdade, claro.
O problema é que daqui não decorre que, numa língua natural, duas palavras negativas sejam sempre equivalentes a duas negações.
Vamos por partes.
Existe em português o que podemos chamar palavras negativas: «não», «nem», «nunca», «nada», «nenhum» — e por aí fora. O grande engano é considerar que uma palavra negativa equivale a uma negação.
Uma negação não se faz sempre que dizemos uma palavra negativa — uma negação faz-se quando usamos uma oração negativa. Usando o termo que aparece nos livros de Português, dizemos: uma oração tem polaridade negativa ou polaridade afirmativa — e esta polaridade não depende do número de palavras negativas dentro de cada oração.
A oração «há alguma coisa naquela sala» tem polaridade afirmativa.
Já a oração «não há nada naquela sala» tem polaridade negativa. O mesmo acontece com a oração «não entro na sala!». Num caso usámos duas palavras («não... nada»), noutro apenas uma («não»), mas são ambas orações negativas.
Ou seja, às vezes, a sintaxe da língua portuguesa exige duas palavras para construir uma oração negativa – enquanto noutros casos exige apenas uma. «Ninguém vai» é uma negação. «Não vai ninguém» é outra negação, construída de maneira diferente, mas igualmente válida de acordo com a nossa sintaxe.
Mais uma vez: são as orações que podem ser negativas ou afirmativas e, dentro de cada oração, as palavras negativas não se anulam umas às outras. Dizer «não há nada» não é uma dupla negação. É uma oração em que, de acordo com a sintaxe do português, usamos duas palavras para expressar a negação.
Cada língua tem as suas particularidades e esta é uma das muitas subtilezas do português (e de muitas outras línguas). Achar que não devia ser assim faz tanto sentido como dizer que não devia haver verbos irregulares. Construções como «não há nada» fazem parte da sintaxe portuguesa da mesma maneira que as formas irregulares do verbo «ser» fazem parte da sintaxe portuguesa.
Portanto: duas palavras negativas dentro da mesma oração não criam uma afirmação — criam uma oração negativa.
Agora, se tivermos duas orações negativas, aí sim aplicamos a lógica que aprendemos na escola. Uma oração negativa anula outra oração negativa: «Não é verdade que não chova!» — quer dizer que chove...
Podemos ter, aliás, uma só frase com duas orações negativas, uma delas criada com duas palavras negativas e outra criada com apenas uma — e o nosso cérebro consegue compreender sem grande dificuldade. Repare: a frase «não há ninguém que não ache» é interpretada como «todos acham».
O número de palavras que a nossa sintaxe nos leva a usar para expressar uma negação é uma das características gramaticais que distinguem as línguas. Já a ligação entre orações expressa a lógica do pensamento, que não muda de língua para língua.
O português, como todas as outras línguas, permite-nos expressar enunciados lógicos (e também enunciados sem lógica nenhuma), duplas negativas que equivalem a afirmações, negações e afirmações complexas... Só temos de compreender como funciona a sintaxe da língua e as várias maneiras como se constroem as orações e as frases. Não temos de inventar uma nova sintaxe.