A língua dos relógios ao contrário
Falei deste tema, entre outros, no último episódio do Português Suave, com o título «Afinal, diz-se “Pais Natal” ou “Pais Natais”?»
Uma estranha forma de ver as horas
Já sabemos que o ano começa num momento diferente em cada fuso horário. No entanto, a hora é sempre a mesma: os ponteiros do relógio encontram-se no número 12 — ou, no caso dos relógios digitais, os dígitos transformam-se naquela hora mágica em que tudo parece recomeçar do zero: 00:00.
Pois imagine-se agora transportado para outras paragens. Mais propriamente, para Nairobi, no Quénia. Imagine que lá tinha chegado no dia 31 de Dezembro, para passar o ano.
Chegou cedo, ali por volta do meio-dia. Como ainda tinha umas horas para matar o tempo, vai a um café beber uma cerveja. Olha então para o relógio que está pendurado na parede — e tem um susto:
O que se passa aqui? O relógio está ao contrário?
Não: o relógio está em suaíli. Sim, até os relógios, por vezes, têm de ser traduzidos…
Quando perguntamos ao empregado como se diz, por exemplo, a hora que marcamos nos nossos relógios digitais como 13:00 (ou seja, uma da tarde), ele diz-nos que a expressão em suaíli é: «saa saba alasiri», ou seja, «sete da tarde».
Há uma explicação para esta peculiar maneira de assinalar as horas. A zona onde se fala suaíli está mesmo em cima do equador. Logo, os dias têm precisamente doze horas e as noites outras doze horas — o ano todo. Vai daí, os falantes começaram a marcar o início do dia quando o sol nasce — o que me parece bastante razoável. O sol nasce às seis e, por isso, as sete da manhã são «uma da manhã» — e por aí fora. Quando o ponteiro do relógio dá a volta e chega ao 12, estamos nas nossas seis da tarde.
Não se preocupe o leitor: um falante de suaíli sabe perfeitamente transformar as suas horas no nosso sistema — afinal, o Quénia tem o suaíli e o inglês como línguas oficiais e, por isso, todos aprendem os dois sistemas.
Bem, chega a hora de passar o ano em Nairobi. Todos estão contentes, à espera da contagem decrescente. Quando, por fim, chegamos ao fim do ano, os relógios marcam «saa sita usiku», ou seja, «seis da noite». E, pronto, tudo aos saltos que, seja lá que hora for, já chegámos a 2019.
Somos todos um pouco estranhos
As horas em suaíli são estranhas? Se virmos bem, a maneira como um português fala do tempo também pode ser peculiar. Dizemos «uma da manhã» quando estamos no meio da noite, por exemplo. Mas, enfim, isso não fará confusão a ninguém. O que talvez seja mais confuso — principalmente para falantes de inglês — será o facto de usarmos dois sistemas diferentes para dizer as horas no dia-a-dia — e qualquer português lida bem com o facto.
Temos o sistema de doze horas e o sistema de vinte e quatro horas. É perfeitamente natural eu telefonar para um restaurante a pedir para reservar uma mesa e, do outro lado, ouvir dizer «Só às 21!». Viro-me para a minha mulher e digo: «Eles só têm vaga às 9…» Para um falante de inglês, língua em que o sistema de 24 horas é muito pouco usado, esta conversa será um pouco confusa. Para nós, nem por isso: usamos os dois sistemas no dia-a-dia, embora o sistema de 24 horas seja mais comum em situações mais formais.
Da mesma forma, para um queniano, dizer «São cinco horas!» em suaíli e saber que tal significa onze horas em inglês também não será nada de extraordinário…
Imagino que muitos relógios quenianos sigam o formato internacional — talvez mesmo a grande maioria. No entanto, é bem possível que, se o meu caro leitor for ao Quénia, encontre por lá um dos relógios virados ao contrário. Não sei se está a pensar ir para aqueles lados nos próximos tempos, mas aqui fica uma tabela para lhe facilitar a vida… (A fonte da informação é esta página.)
O suaíli — que é língua oficial em vários países e uma lingua franca no Leste de África — tem mais diferenças curiosas. Para começar, chama «Ureno» a Portugal. Por exemplo, a palavra «livro» diz-se, em suaíli, «kitabu». Nada a assinalar. Já quando chegamos ao plural da palavra, temos uma surpresa: não se faz com uma letra no final, como por cá. Faz-se mudando a primeira consoante. Se quiser pedir «livros» em suaíli, terei de dizer: «vitabu». Mas a regra muda consoante a classe da palavra. Todos os substantivos do suaíli são integrados numa dessas classes. O termo para «pessoa» é «mtu» e pertence à classe I. Logo, o plural faz-se com o prefixo «wa-»: «watu» (pessoas). Já o plural de «mti» (que significa «árvore» e pertence à classe III) faz-se assim: «miti» (árvores).
A divisão em classes não é muito diferente da divisão por géneros nas línguas latinas. No entanto, nós temos apenas duas classes (o masculino e o feminino), enquanto o suaíli tem 18!
Como, em suaíli, a classe é marcada no início da palavra e as frases têm de seguir complexas regras de concordância, um texto em suaíli tende a ser muito aliterativo. Por exemplo, a frase «Aquelas duas boas pessoas caíram.» escreve-se assim (fui buscar o exemplo ao Wiktionary): «Watu wazuri wawili wale wameanguka».
As línguas são, de facto, muito diferentes entre si. Há diferenças na maneira como as palavras dividem o mundo entre si (a palavra «tempo», em português, tem várias traduções para inglês, por exemplo) — e há diferenças nas regras que ligam as palavras umas às outras.
Estas diferenças entre línguas costumam irritar uns e fascinar outros. Conto-me no clube dos fascinados — o que só me ajuda a trabalhar, já que passo grande parte do tempo com as mãos na massa das línguas, a traduzir. Mas o fascínio, às vezes, chega a pontos de haver quem ache que isto representa uma separação intransponível no modo de pensar dos povos. Também haverá quem julgue encontrar uma relação entre as regras gramaticais e o carácter ou a alma dos povos. Tais afirmações são habitualmente ditas como se fossem verdades óbvias — e, no entanto, é extraordinariamente difícil imaginar como é que a existência de 18 classes de nomes em suaíli reflecte, comprovadamente, as características do povo.
Cada língua tem as suas regras e as suas deliciosas manias — que às vezes nos obrigam a mudar os relógios! —, mas essas regras e essas manias não são reflexo de uma qualquer alma nacional. São apenas fruto dos hábitos inconscientes dos falantes e da mudança contínua, imperceptível e imprevisível desses mesmos hábitos ao longo dos séculos.
O que a língua faz, isso sim, é marcar, na sua exuberante variedade, a pertença a vários grupos humanos (desde a nação à classe social) — e servirá também, num dia bom, para comunicar o que pensamos e para expressar o que sentimos.
Aproveito para desejar um Feliz Natal e um Excelente 2025 — que nos traga muitas viagens e muitas surpresas, nem que seja um estranho relógio virado ao contrário numa cidade africana.
(Uma versão deste artigo foi publicada como crónica no Sapo 24. Deixo aqui um agradecimento ao Paulo Borges Sousa, que me alertou para a peculiar maneira de dizer as horas em suaíli.)