A incrível história da letra V
A nossa letra V tem uma história surpreendente. Vou contar o que lhe aconteceu nos últimos 2000 anos (o que veio antes também é interessante, mas fica para outro dia).
A história das letras está contada no Atlas Histórico da Escrita. Este texto é novo, baseado num vídeo que gravei há poucos dias.
Em latim, a letra com a forma V representava sons que nós hoje representamos com a letra U. Usávamos V em DOMVS, mas também em VILLA. Nesta última palavra, o som era uma semivogal — VILLA lia-se como “uíla” (no alfabeto fonético internacional, o som desta semivogal é representado como um [w]).
Esta semivogal, durante a Idade Média, transformou-se num [β] (um som semelhante a [b]) e, depois, num [v] (em Portugal, ainda hoje encontramos tanto um como o outro som na leitura da letra V).
Isto significou que a mesma letra — V — passou a representar dois sons: o [u] e o [v] (ou [β]).
Por outro lado, também durante a Idade Média, desenvolveram-se as letras minúsculas. A letra V manteve-se assim na versão maiúscula, mas ganhou duas formas minúsculas: em geral, o <v> para o início das palavras e o <u> para as outras posições.
As duas formas não representavam sons diferentes. Era uma diferença meramente tipográfica.
Na época d’Os Lusíadas ainda era assim.
Encontramos, nas primeiras edições, LVIS para o nome do poeta — com aquele V maiúsculo.
Nas minúsculas, temos a forma que hoje reconhecemos como <u> para representar os dois sons:
em «nauegados», o <u> representa o som [v];
em «muros», o <u> representa o som [u].
No início das palavras, temos a forma <v> também para representar os dois sons:
em «vicioſas», o <v> representa o som [v] (ali pelo meio está o S longo, que parece vagamente um <f>);
em «vnidos», o <v> representa o som [u].
Tínhamos duas formas para a mesma letra, uma letra que representava dois sons.
Hoje, parece-nos óbvio o que deveria ser feito: cada forma deveria ficar ligada a um som diferente. Mas só consideramos isto óbvio porque vivemos num mundo em que é assim. Para quem vivia na época de Camões, esta era uma letra com várias formas e representava vários sons. Nada de extraordinário.
Os tipógrafos lá tentaram arrumar o sistema de escrita e começaram a usar a forma <v> para o som [v] e a forma <u> para o som [u] — diga-se que houve línguas em que a ligação entre letras e sons acabou por ser diferente, como sabemos (basta pensar que em alemão a letra <v> representa o som [f]).
O processo foi lento. No século XVIII, ainda víamos muita confusão entre as duas letras. Aliás, ainda hoje, em certas inscrições que tentam recuperar uma estética clássica, vemos o <V> a representar um [u].
E nem sequer falámos do W, que também saiu desta confusão…
Termino com isto: as histórias de cada uma das letras é muito mais interessante do que suspeitamos. Vale a pena conhecê-las!
A história das letras está contada no Atlas Histórico da Escrita.